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quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

RADIO LIBRE!

MUITO PERTINENTE FAZERMOS ALGO SOBRE O ASSUNTO AQUI, JÁ QUE SOMOS UMA FRANCA NEO-METRÓPOLE E INCLUSIVE TEMOS PROBLEMAS PARA SOLUÇÕES QUE APARECEREM, OU SERIA O ANVERSO?!


Favela FM, Uma onda que vem do morro

Cláudia Mesquita e Tânia Caliari

- Dá pra tocar uma música?
- Aí, essa rádio não toca música não, toca é idéia.
- Ah, tá. Então tchau.
- Falô. Quem quiser ligar aí pra falar sobre a Rádio Favela, tem aqui duas repóter da revista Palavra. É uma revista que você não conhece, porque só quem tem poder aquisitivo pode comprar. Na favela não chega nem jornal, é só rádio mesmo. Mas se você quiser falar sobre a Rádio Favela FM, 104,5, liga aí: 282-1045.

Mal entramos no estúdio da Rádio Favela, um quarto apertado na construção ainda em acabamento, e Misael já convoca os ouvintes (ou "escutantes", no jargão da rádio) para conversar com a gente no ar.

A janelinha do cômodo enquadra bananeiras e a vista de um dos morros apinhados de barracos de alvenaria do Aglomerado da Serra - a maior favela de Belo Horizonte, localizada na zona sul da cidade e composta de 11 vilas, cujas populações somam pelo menos 100 mil habitantes.

Em meio ao entra e sai e às conversas no estúdio, o telefone não pára de tocar. Da Lindéia, na região sudoeste da cidade, o escutante Clever manda suas impressões sobre a rádio: "As outras rádios não têm moral pra falar. A Favela tem. Na Favela falam papo da gente, de mano, de chegado...".

"De preto pra preto", decifra Misael, 39 anos, um dos criadores da rádio que no final dos anos 70 invadiu o dial através de um transmissor improvisado, movido a bateria de caminhão, quando ainda não havia energia elétrica na favela. Para rodar a música, um toca-discos a pilha.

Ligados nos bailes de funk e soul que surgiram na época nas ruas próximas à favela, os criadores da rádio conheciam bem as palavras de ordem que, nos alto-falantes, denunciavam a discriminação e pregavam a auto-afirmação do negro - ecos do movimento Black-Power e do Black is Beautiful, aqui reinterpretados.

Hoje munida de um moderno equipamento italiano de transmissão, a Rádio Favela acumula, entre outros feitos, duas condecorações da ONU pela atuação no combate às drogas e à violência, e as marcas não-oficiais de segundo lugar na audiência na zona Sul de Belo Horizonte e quarto lugar na Região Metropolitana da cidade.

Não-oficiais porque a medição do Ibope inclui a Fabela na categoria "outras", vala comum onde se misturam todas as rádios não-comerciais da cidade - nenhuma com a grande penetração da Favela, considerada hoje a rádio comunitária de maior audiência do Brasil.

A eclética comunidade de escutantes despreza a geografia e confirma o prestígio e o alcance da rádio, que chega a atingir 90 outros municípios além da capital, quando opera a maior potência.

Nesta segunda-feira, enttre 17h e 18h, durante o programa "Uai Rap Soul" (ou Uai Rap Sô!), o responsável pelos prêmios da ONU, eles ligam de Ibirité a Ribeirão das Neves, cidades vizinhas, e de bairros espalhados pelos quatro cantos de Belo Horizonte, tanto no "asfalto" quanto na periferia: Ouro Preto, Caiçara, Concórdia, Céu Azul, Alto Vera Cruz, Tony, Paulo 6º, União, Serra, Alto dos Pinheiros, Monte Azul, Estoril...

* * * * *

- Cê tá falando de onde?
- Do Horto.
- Qual é o seu nome?
- Juninho.
- Tudo bom, Juninho?
- Melhor ainda agora, né, que a Rádio Favela voltou. Eu tava sentido a maior falta... Eu e a minha freguesia aqui no bar.


Juninho talvez tenha ouvido algum dos boatos que correram sobre o fechamento recente da rádio, que se estendeu por quase um mês. A causa foi a liminar emitida pela 17ª vara da Justiça Federal de Minas Gerais, cumprindo um pedido de fechamento feito pela Anatel, a Agência Nacional de Telecomunicações, que alegava a falta de concessão de canal da rádio, e a reincidência do descumprimento de ordens de fechamento anteriores, e a interferência em freqüências de outras rádios do dial.

A Favela voltou a operar há poucos dias, depois de esgotado o prazo imposto pela liminar para que a Anatel avaliasse a situação da emissora. É a primeira vez que a rádio some do dial, para indignação dos escutantes.

A história da Favela é uma crônica de enfrentamentos e o histórico de "pulos" da polícia - como eles se referem às blitz - é extenso.

Apesar de táticas de resistência como o silêncio dos vizinhos e as mudanças freqüentes de QG (cerca de 30 em 20 anos de vida!), a rádio foi fechada pela polícia pelo menos cinco vezes. A penúltima, em 1997, teve ares de operação de guerra: mais de 700 policiais, dois helicópteros e quatro atiradores de elite cercaram o barraco onde a Favela estava instalada, levando todo o pessoal. "Isso aqui é marca de algema, de prisão por conta da rádio", conta Misael, mostrando os pulsos.

Dos cerca de 50 adolescentes da antiga Cabeça de Porco, atual Vila Nossa Senhora de Fátima, amigos de baile e futebol que nos idos dos 70 tiveram a ousadia de criar uma rádio na favela, Misael calcula que restou um quinto por ali. Os outros tiveram o destino da periferia de grandes cidades brasileiras: "Os que não morreram estão na cadeia".

Microfone aberto para todos os ruídos, a Favela não tem locutor padrão. "Eu fico 12 horas falando no rádio, você acha que dá pra ter voz de veludo?", pergunta Misael. Neste dia, cerca de 15 pessoas batem papo no estúdio - é a "família Favela", voluntários que mantêm a rádio no ar, mais alguns agregados, preparando-se para uma reunião logo mais. A pauta: a Favela entrou com um processo junto à Delegacia do Ministério das Comunicações de Minas Gerais e está em vias de conquistar a outorga de rádio educativa. Se o processo vingar, será uma das poucas a operar legalmente entre as cerca de 20 mil rádios que requerem concessão junto ao Ministério das Comunicações.

* * * * *

Maria do Carmo, dona de casa de General Carneiro, zona leste da cidade, abre o coração no ar. Pena que Dona Mariquinha, apresentadora e alma do programa "Rose Choque", programa de mulher na Favela, não está lá hoje para ouvi-la. Nasceu sua nova neta e ela está cuidando do rebento. Alguns ouvintes ligam para parabenizar. Preta retinta de 75 anos, Dona Mariquinha não sabe ler nem escrever. Sua conversa na rádio é de improviso e fala de tudo: como curar umbigo de recém-nascido, conselhos sobre enfrentamentos com maridos violentos, dicas de saúde.

Como no grosso da programação da Favela FM, o "Rose Choque" acaba, intuitivamente, por valorizar a fala e os símbolos do morro, "traduzindo" numa linguagem comum informações às vezes distantes. Usando expressões que não encontram nos meios de comunicação "legais".

O programa é "Arapuca Caipira", oito da manhã em ponto. Misael dá mais uma notícia: o número oficial de assassinatos no Aglomerado da Serra em 1999 é, até o momento, 52.

"Isto é o que eles divulgam, porque tem muito morro aí que não entra na conta. Deve estar chegando em 80". Misael compara a cifra com os 42 assassinatos no mesmo período de Jardim Ângela, em São Paulo, "a região mais violenta do Brasil".

"Quando é no Jardim Ângela a imprensa cai em cima. Daqui ninguém fala. A imprensa não divulga nem aprofunda, porque as construtoras impedem o destaque. A gente mora perto de uma área em que o apartamento custa o olho da cara", diz, referindo-se ao bairro da Serra.

Não faltam histórias sobre a violência no morro, que abrevia a história de parte da população jovem.


* * * * *

"Tenho 29 anos e estou vivo, contrariando as estatísticas", diz o ex-"avião" do tráfico Hudson, hoje repórter volante da rádio Favela.

"Os adolescentes das favelas ainda não perceberam que a idéia que rola aí é que a gente mate uns aos outros. O dia que eles perceberem isso, o jogo vai virar. E isso é para tudo. Você só faz revolução reivindicando o que é seu", prega Misael, nos bastidores.

No "Aerobrega", Oswaldo anuncia a morte do senhor Sílvio, da padaria Jota: "Amanhã vão sair dos ônibus da pracinha da padaria, no final da linha de ônibus 2151, para levar quem quiser ir no enterro". Mais tarde, entra no ar uma assistente social do Hospital João 23, para localizar a família de Leandro, um menino de 12 anos que caiu da traseira de um ônibus, quando voltava da escola. Passa bem mais não se lembra do nome da rua onde mora, na Vila Ventosa, Aglomerado da Serra.

"A Rádio Favela é a Internet dos favelados", costumam dizer os locutores, referindo-se à rede de informações e solidariedade criada pela rádio, que, segunda a voz corrente, resolve em menos de três horas qualquer pendenga de perdidos e achados.

A rede informal de serviços não pára por aí. "Eu estou desempregado e fui abandonado pela minha mulher. Os filhos ficaram comigo. Eu queria saber se tenho direito a uma pensão alimentar", pergunta o ouvinte do bairro Padre Eustáquio, durante o programa "Escutando Direito", de consultas jurídicas, realizado pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) Jovem.

Os serviços práticos prestados à comunidade extrapolam as ondas do rádio e se materializam em campanhas assistencialistas e ações integradas. Aliada ao Lyons Club e à Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra, da Prefeitura de BH, a Rádio Favela encabeçou uma campanha para que os moradores do Aglomerado da Serra tirassem seus documentos.

Cerca de seis mil pessoas compareceram à estrutura montada numa escola municipal da Serra. Só 300 conseguiram tirar a "identidade" - a maior parte, por falta de certidão de nascimento.

Para os músicos que desejam divulgar seu trabalho na Favela FM, o "jabá" é diferente. Basta subir no morro com seu CD debaixo do braço, sem se esquecer de levar também alguns lápis e cadernos - que a rádio distribui entre as escolas da comunidade. Gabriel, o Pensador, rapper do "asfalto" carioca, se sensibilizou e doou 1.500 cadernos para a campanha informal da Favela. Sempre tocou na rádio.

Um dos programas mais fortemente identificados à Rádio Favela é "Uai Rap Soul", com Rogério, com Misael ou com qualquer voluntário que estiver no estúdio na hora. Nada que comprometa. O estilo improvisado da Favela FM é talvez o melhor retrato da vida no morro. Transforma a emissão numa fonte de renovadas surpresas, ao contrário das rádios comerciais com sua programação estanque e padronizada.


* * * * *

As transmissões ao vivo são uma das marcas da rádio, que realizou cerca de 60 no primeiro semestre de 1999, incluindo jogos de futebol de várzea, campanhas comunitárias comandadas pela própria Favela, eventos culturais e até "grandes reportagens".

Foi o caso da transmissão feita do presídio de Neves, município vizinho a Belo Horizonte, onde os "repórteres comunitários" da Favela botaram os presidiários no ar para falar da vida e mandar recados para os amigos de fora das grades.

Todo santo dia, às seis da tarde, a Favela põe no ar o seu "momento de reflexão": leitura de um trecho bíblico, mais "Ave Maria" com Steve Wonder e a benção de um padre gravada. Com Deus não se brinca. O "momento de reflexão" é provavelmente a única parte da programação da rádio que vai ao ar religiosamente no mesmo horário. Nesta quinta, pela voz de Paulo, conhecido como DJ a Coisa. O tema é mais que simbólico: a virtude da perseverança. E a perseverança acabou premiada.


Fonte: http://www.ecologiadigital.net/amarc/favela.html
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