Blog liberto a público de arte abstrata-concreta, literatura mundana, jornalismo experimental e direito cotidiano. ¡Pensare reactivus est!

terça-feira, 3 de outubro de 2006

A centésima publicação é um presente: para mim, para vocês

Eis então agora que, não por escrúpulo particular ou supersticiosidade apócrifa, não hei de escusar-me a exprimir aqui em comemoração à 100ª postagem neste blog os textos que considero umas das melhores coisas que já pude fazer com a cabeça entre letras e pensamentos. É então escolhido aqui um em poesia, um em prosa e um em conto. Saúdo-vos e pleiteio estar íntegro e capaz para corresponder a mais textos insinuantes, leituras motivantes e sentidos empolgantes. Agora, aos escritos.

PAPEL DE CARTA TESTAMENTO

Ponto final em nossa linda relação
Escreveste em teu diário estas palavras
Parte mortal em nossa longa paixão
Encravaste punhal férreo nestas entranhas

Meus desígnios me revelam o ponto fraco
Envolvi nós dois em uma trama falsa
Teus insignes atos não mereciam um mal
Só a vi triste quando já havia deslize final

Entre erros e calúnias pervertido de mim
Mesmo além da sorte exigi-a de você
Mestre atrás das noites etéreas e etílicas
Escondia essa fraqueza para não ter azar

Menti, perdi, um adeus calado ouvi de ti
Escutei o coração dividido entre devaneios
Repeti, senti, um afoito desejo de ser feliz
Mas a ausência tua arrefeceu idéias boas

Sobrou-me o tempo e o espaço, rivais
De quando em quando consigo passar
O tempo ou mudar esse espaço
Entretanto minhas cordas vocais sussurram
Teu nome a cada pestanejar

Murmurejo por ter vivido
E nem aprendido coisa séria
A bocados umedecidos de lágrimas
Vou engolindo o pão que o diabo amassa
O problema é: você volta ou eu morro?
(Não espero resposta ...)

João Paulo Santos Mourão
08/06/2003

- @ - @ - @ -

Dos sentidos – tratado mínimo

Em veemência geral está posto que Deus ou a superioridade em criatura nos deu, aos seres humanos, uma só língua e uma só boca, para que dois ouvidos, dois olhos, duas narinas, duas mãos e dois hemisférios cerebrais estejam em consonante trabalho.
Ora, pois; se a escrita nada mais é que a conjugação perfeita da palavra pensada em dizer com os sentidos outros todos reflitos coordenadamente (para quem os tenha todos ou não), há que se convir da legitimidade dessa forma como melhor meio da expressão do sentimento de mundo a um mundo de sentimentos dos leitores...

João Paulo Santos Mourão
24/07/2005

- § - § - § -

Delírio Melodramático

Por uma noite deserta vagueio incerto, confuso por completo.
Penso no que fazer e recuso o passado errado; preciso esquecer – de certas desilusões – o caminho errado.
(...) Preto velho me chama à porta do casebre, parto com receio, então aceito um pouco de prosa. Pergunta-me: “Por que tão triste garoto? Partiu com luz e lucidez, volta com lágrima e languidez? Perdeu um amor, pressinto em seu pesar”. Um patrão bondoso era ele, além de quanto me permitia passar pela adentrada noite e por possíveis paradigmas. Acima disso, prestava-me bons conselhos, quase posso chamar-lhe pai! “Eu tive um problema passageiro, bom amigo. Porventura conhece a preciosa moça. Chamam-na Magna, mas é Patrícia Magna realmente. Saboreei do seu profundo calor e abraços poderosos. Estive a ponto de casar-me; não fosse a noite de hoje, teria provado de um infortúnio maior!” “Pois diz, meu filho, que mal a mulher conseguiu a ti fazer para sentires tal desânimo e por que reclama pungente desagrado?”...
Desfiz o pensamento por um instante e rememorei o salão do encontro à noite marcado. Preparei-me com bom gosto e tirei o meu mais agradável terno para a ela premiar com boa visão, junto com um presente primoroso. Percebi quanto pompa aparecia aos olhos dos mais diversos convidados e parei contra uma das alas acortinadas do pátio especial. Parei e previ um redemoinho de fúria se formando ao redor do meu corpo. Investi, porém, aos fundos do pátio, na ânsia de confirmar o desenrolar da cena sem, no entanto, ser notado. Parolavam amistosamente alguns casais, e, ao redor da mesa, viam-se também um homem num smoking impecável e azul-escuro, com feições de brilhante magnata, luxuoso como se apresentava. E, de frente a si, Patrícia... Composta por cabelo em cachos de úmidos caracóis, plumas ao alto da tiara, colar de pérolas e miçangas azul-marinho; abaixo, com um vestido púrpuro, entrelaçado às costas, de alça finíssima e decote em forma oval. Sua boca possuía um tom sereno e coberto de timidez.
Espantou-me o fato de estar com o braço junto ao do senhor a sua frente. Costumava manter uma expressão pacífica diante de tudo, convém lembrar. Mas ali... Via-se algo novo, uma mulher resoluta, com prazer ao falar alto e vigorosamente. De súbito, avançou ao homem com quem dava as mãos e soltou duradouro beijo em plena conversa com as pessoas do grupo de amigos dele. Alegrou-se com as vivas do público em vibração, na platéia, dentre os convidados dele.
Pousei a taça que acabara de pegar e vi que já houvera esvaziado. O pacato ser que existia em mim viajara para um cárcere longínquo. Contive-me o quanto pude, até levar os olhos de volta à sua mesa; preparavam fotos e distribuíam presentes entre si. Comecei a arquitetar um plano de chegada.
Poderia chegar ao limiar da raiva, mas não: não perderia a classe por Patrícia. Ela já não merecia meu perdão. O homem ficaria indubitavelmente perplexo com o que eu iria dizer. Já sabia como desmoraliza-la ante o comitê de boas-vindas do moço. E ela nunca esqueceria de mim, pelo menos no tocante à lição que estava preste a ministrá-la.
Compareci a um dos garçons e pedi-lhe o favor de enviar ao moço daquela mesa um bilhete e dissesse o ser particular o assunto. Logo o garçom fez como lhe ordenara.
O rosto do homem enrugou-se e ficou tesa a sua expressão ao correr a vista pela última linha.
E logo depois se compunha a honorável figura em minha mesa. Apresentou-se. Disse tratar-se de Hernandes Fagonasso, anfitrião da festa. Após cumprimenta-lo, perguntou o que eu justamente procurava afirmar com aquela mensagem do bilhete. Raciocinei rápido e peguei-o de pronto susto: “A moça, com quem o senhor estava a deleitar-se, a muito corpo espreguiçou o seu tédio em seus braços. Trata-se de grande vigarista, mestra conhecida no golpe do milionário. Aproxima-se como interessada, suga o quanto pode da vítima e foge sem deixar vestígios. Presenciara a sua perfídia em alguns cerimoniais e não podia negar que era ela linda, atraente e garbosa; contudo, não devia ocupar-se de confiar-lhe mais um segundo de atenção amorosa, ou seria enganado como os demais”.
Ouviu tudo quietamente e, depois de refletir um pouco de tempo, ele me olhou com gratidão e apertou meu pulso com honestidade. “Agradeço sua ajuda e sinto-me honrado de tê-lo conhecido, embora por situação tão adversa. Muitíssimo grato. Será para mim um amigo de agora em adiante. Adeus!”.
E se foi. Patrícia observara a tudo indiscretamente, horripilada pelo teor da expressão envolvida nas minhas atitudes e como atingiram a animação, outrora retumbante, de Hernandes. O seu olhar era fulminante e eu contemplei-a ainda mais cortante e secamente. Amedrontou-se com o meu jeito e eu, por dentro, me comprazia em cachoeiras de contentamento pela vingança exercida.
Aproximou-se de minha mesa, alguns instantes depois da saída do outro.Saudou-me, agora carinhosa e tímida. Nem a cumprimentei e nem lhe dirigi a palavra. Perguntou, friamente, quem era o amigo. Retruquei, na mesma frieza, que ela deveria conhecê-lo, pois estava antes à mesa dela. Ela engasgou-se com o drinque e, refazendo a postura, comentou que estava na mesa a convite duma amiga; não conhecia, ainda, aquele senhor. E eu, como já supunha a resposta evasiva dela, afirmei que o homem não era meu conhecido; ela, sim, já deveria conhecê-lo em intimidade. Dito isso, ela emudeceu por instantes e acrescentou, resistente: “Não entendo o que você está querendo dizer com essas palavras confusas”.Fui objetivo e duro, ao mesmo tempo: “Seu amante não voltará mais hoje para perturbá-la, sossegue”. Foi então que ela se deu por vencida e soluçou baixinho. E quis tocar em minhas mãos, num gesto de súplica e desespero pela situação embaraçosa que criara; detive-a e desferi as últimas frases: “Sede, pois, como tu queres; e não como eu quero. Assim seja, então, mulher... Ah, a propósito, boa festa! E boa noite. Até nunca mais!”.

João Paulo Santos Mourão
01/11/2004

"Para o humanitismo o importante não é só o estar vivo, mas simo nascer e renascer incansável, o viver e reviver palpitável, o morrer e remorrer evitável"
Share/Bookmark

Um comentário:

Carlos Rocha disse...

Parabéns pela centesima postagem. Que vocÊ continue com este blog produzindo mais e mais.
Falou!